E se você dormisse? E se você sonhasse? E se, em seu sonho, você fosse ao Paraíso e lá colhesse uma flor bela e estranha? E se, ao despertar, vocêtivesse a flor entre as mãos? Ah, e então? (Coleridge)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Musica Erudita

Existem três definições para a música erudita, ou música clássica.

A primeira delas, utilizada por muitos dicionários de música, define a música erudita como sendo música "séria" em oposição à música popular, música folclórica, música ligeira ou de jazz. Essa definição talvez não seja a melhor a se fazer, se considerarmos que a música para ser séria não precisa, necessariamente, ser música erudita.

A segunda definição, que serve apenas para a música clássica, afirma que essa música seria qualquer música em que a atração estética resida principalmente na clareza, no equilíbrio, na austeridade e na objetividade da estrutura formal, em lugar da subjetividade, do emocionalismo exagerado ou da falta de limites de linguagem musical.

Nesse sentido a música clássica implica a antítese da música romântica feita em fins do século 17 e início do século 19, em que a ênfase recaía sobre os sentimentos, as paixões e o exótico, em lugar da razão, da contenção e de esteticismo da arte clássica.

O problema nesse caso é que os primeiros traços do romantismo, que seria a música contrária à música clássica, podem ser apreciados nas obras de Beethoven e Schubert, e, em um perídodo mais adiante, nas de Brahms, Wagner e Liszt, ou seja, hoje o termo música clássica, para a grande maioria das pessoas, abrangeria estes nomes como compositores de música clássica ou erudita. Ninguém em sã consciência afirmaria hoje que Beethoven seria a antítese da música clássica.

Assim sendo, essa também não é uma boa definição para o termo.

Uma terceira definição afirma que música erudita seria a música feita durante o período de 1750 a 1830, em especial a de Haydn, Mozart e Beethoven. Podemos dizer que nesse período a música mais representativa e mais mencionada é a da Escola Clássica Vienense, refletindo a importância de Viena como capital musical da Europa nesse período.

A Escola Clássica de Viena seria responsável pelo desenvolvimento da sinfonia, do quarteto de cordas e do concerto, e assistiu ao triunfo final da música instrumental sobre a música coral. Entre suas mais importantes e duradouras realizações está a introdução e o estabelecimento da "forma sonata" _estrutura musical que se desenvolveu durante a segunda metade do século XVIII nas sonatas, sinfonias, concertos, aberturas, quartetos, árias e etc.

Suas origens são complexas e só se tornarão conhecidos como formato padronizado após serem definidas por Reicha, em 1826, e depois por Czerny, em seu compêndio "Escola Prática de Composição", em 1848.

As principais características das "formas sonatas" estão nos primeiros movimentos de Haydn, Mozart e Beethoven. As principais mudanças que essas "formas sonatas" trouxeram para a música estão nas violentas oposições de vários tons, no contraste entre várias idéias temáticas diferentes, que, por sua vez, aumentam substancialmente o aspecto dramático da música e na articulação da estrutura através da instrumentação.

Os fatos musicais no interior da sonata costumam ser explicados a partir de três planos: exposição, desenvolvimento e recapitulação.

A exposição apresenta o material temático que caminha da tônica, que é a primeira nota de uma escala, da qual o tom em que a escala está construída recebe o nome, ou seja, a tônica da escala de dó maior ou de dó menor é dó. Existe também, dentro de uma escala, a nota dominante, que é a quinta nota acima da tônica, ou seja, se a tônica for dó a sua dominante será sol, pois sol é a quinta nota da escala de dó (1ª dó, 2ª ré, 3ª mi, 4ª fá, 5ª sol, 6ª lá, 7ª sí).

O desenvolvimento diz respeito à discussão e transformação dos temas, aliás é sempre bom lembrar que o tema é a idéia musical que forma a parte estrutural e essencial de uma composição.

A recapitulação é a que representa ao material de exposição, basicamente na área da tônica. A função dramática dessa seção é afirmar o tom original, após a transferência para a dominante no final da exposição. É a recapitulação que dá o toque final na sonata.

Porém, segundo grandes estudiosos da música e de teoria de musical, o termo que melhor representa a música dos grandes compositores é música de concerto, o que demonstra a impossibilidade de classificá-la, pois como afirma Ênio Squeff, "Beethoven não tem nada de erudito, nem Villa-Lobos. A música de concerto é aquela inqualificável. É a gênese da atividade musical".

No Brasil

A Música Erudita, ou Clássica, ou de Concerto, no Brasil dos primeiros séculos de colonização portuguesa, vinculava-se estritamente à Igreja e à catequese. Com o passar do tempo, irmandades de música, salas de concerto e manuscritos brasileiros vão traçando o perfil de uma atividade crescente no país, onde pontificaram nomes como Antônio José da Silva, cognominado "O Judeu", José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Caetano de Mello Jesus, entre outros.

Com a chegada de D. João VI no Brasil, tivemos também um grande impulso às atividades musicais e José Maurício Nunes Garcia destacou-se como o primeiro grande compositor brasileiro.

Mas mesmo com todas as obras feitas por estes compositores, ainda no século 19, falar em música erudita brasileira era motivo de riso, num período totalmente dominado pelos mestres italianos (com esporádicas contribuições de alemães e franceses).

Foi somente com Villa-Lobos que a música nacionalista no Brasil introduziu-se e consolidou-se pra valer.

Nessa época, ignorava-se compositores como Alberto Nepomuceno e Brasílio Itiberê da Cunha, exatamente por causa da excessiva brasilidade de suas composições, e admitia-se Carlos Gomes graças ao sucesso europeu.

É a partir de Villa-Lobos que o Brasil descobre a música erudita e o país passa, desde então, a produzir talentos em série: Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, Camargo Guarnieri, Guerra-Peixe, Cláudio Santoro e Edino Krieger são alguns desses expoentes.

Mas mesmo hoje, o Brasil ainda é um país que não percebeu o devido valor da música clássica ou erudita ou de concerto, talvez por causa de nossa história ou de nossa situação político-econômica. Os músicos eruditos e os artistas em geral são, como na opinião do professor Koellreutter, "uma espécie de Quixotes, que lutam contra os moinhos de ventos".

Renato Roschel

sábado, 24 de maio de 2008

Este mundo da injustiça globalizada - Jose Saramago.

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça
dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal
elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
18/03/2002

terça-feira, 13 de maio de 2008

A cultura mais do que a herança genetica determina o comportamento do homem e justifica as suas realizações"(kroeber)
A cultura é uma lente atravez da qual o homem vê o mundo.Homens de culturas diferentes usam lentes diversas.



“O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestiário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário tem a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast, com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria prima o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de alguma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano.”


(
O cidadão norte-americano
Ralph Linton, antropólogo)